O Homem e O Livre Arbítrio
Dom Estêvão Bettencourt
As noções propostas a respeito da estrutura
essencial do homem e do seu processo de conhecimento levam-nos logicamente à
consideração de uma propriedade da vontade ou do amor: o homem é dotado de
livre arbítrio. Isto quer dizer: é capaz de escolher entre o agir e o não agir,
entre este e aquele modo de agir, entre este e aquele fim de seus atos e de sua
vida.
Tal proposição se baseia no fato de que a
vontade humana tem o desejo inato do bem, e do bem sem restrição, infinito. Expliquemo-nos:
sempre que deseja algum objeto, a vontade o deseja estritamente porque lhe
parece bom e na medida em que lhe parece bom (ninguém deseja o mal enquanto é
mal; pode, porém, desejar o mal dado que este se apresente como algo de deleitoso
ou vantajoso); e, ao procurar o que lhe parece bem, ou bom, a vontade não
conhece termos; quer possuir o bem nas proporções mesmas em que ele
existe e dele fruir irrestritamente. Ora, acontece que aqui na Terra
nenhum objeto se apresenta ao homem como o Bem Irrestrito, pois tudo que o
indivíduo nesta vida conhece ou é finito (alguma criatura) ou é Infinito
(Deus), contemplado, porém, através de véus, isto é, através das criaturas e
das fórmulas da revelação sobrenatural, que pressupõem os conceitos finitos da
nossa inteligência.
Dado, pois, que o homem neste mundo não encontra o
Infinito tão como é, com sua infinitude, para se poder repousar e saciar, nunca
se vê solicitado necessária e irresistivelmente. Qualquer dos bens desta vida
só é capaz de deter o homem na medida em que este queira considerar o que tal
objeto apresenta de bom, fazendo abstração dos aspectos de deficiência e
limitação que o mesmo inevitavelmente apresenta; e não há dúvida de que esta
consideração unilateral não pode ser indefinidamente sustentada; cedo ou tarde,
o indivíduo percebe as lacunas do objeto a que até então aderia, e é tentado a
procurar outro bem em que se possa saciar (somente na fé, a qual é movida
por um ato da vontade livre, resistindo à volubilidade natural, é que o cristão,
neste mundo, se pode fixar inabalavelmente em Deus).
É, pois, o fato de que o homem não apreende o
Infinito como Infinito (do qual ele tem sede inata) que explica nesta vida a
sua liberdade de arbítrio. Tal prerrogativa eleva a criatura humana muito acima
dos irracionais. Estes, carecendo de inteligência, só podem conhecer, através
dos sentidos, objetos materiais e limitados; o seu apetite, por conseguinte, só
aspira a bens finitos e deixa-se arrastar pelos valores concretos e passageiros
que sucessivamente lhes ocorrem.
O livre arbítrio, porém, embora seja título de
dignidade, não deixa de constituir uma arma de dois gumes para o homem. Capaz
de escolher entre o autêntico Infinito (Deus) e o aparente ou falso Infinito
(riquezas, ciência, gozo sensual...) como último termo de seus atos, o homem
pode optar pelo aparente, e assim encaminhar toda a sua vida para meta errônea,
onde necessariamente se sentirá deslocado, desgraçado. Todavia, não obstante o
perigo de que abusasse da liberdade, Deus não quis deixar de fazer o homem
livre nem quer, depois de o ter criado, retocar, desrespeitar, mutilar o dom
que lhe fez. Isto seria indigno do Criador; no conjunto dos seres criados,
reflexos da Perfeição divina, era, e é, de toda conveniência, houvesse também este
tipo de imagem de Deus, que é o homem livre, não autômato, não artificialmente
impulsionado ou coibido. O Criador permite, pois, ao homem, o pleno uso da sua
liberdade; mediante esta, a criatura pode mutilar-se, tornar-se monstruosa, sem
dúvida; a infelicidade é então a sorte que ela mesma plasma para si. Todavia,
no quadro universal das criaturas, mesmo a desventura dos maus não
destrói a beleza do conjunto ou a harmonia que resulta do fato de haver também
criaturas livres que usem devidamente da sua liberdade para ser perfeitas, para
ser dignas expressões da Beleza divina. Foi por isto que Deus Se
dignou assumir o "risco" (na expressão forte de alguns escritores) de
criar o homem livre.
*Grifos Nossos.
BETTENCOURT, Estêvão. A Vida que Começa com
a Morte. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Agir, 1963.
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