O autoconhecimento é hoje um fenômeno: nas seções
especializadas das grandes livrarias vemos centenas de títulos relacionados ao
tema e alguns dos livros mais vendidos, na lista dos best sellers são de
auto-ajuda. Nos programas de televisão, vemos terapeutas, médicos, psicólogos,
apresentadores, celebridades debatendo a necessidade do homem atual de
conhecer-se, ter domínio sobre suas emoções e sentimentos. Algumas religiões,
como o budismo, estão em alta na sociedade por trazer o assim chamado
“equilíbrio interior”. Mas podemos nos perguntar: por que todo esse interesse
pelo autoconhecimento? O que realmente o ser humano está buscando quando ele se
movimenta rumo ao conhecimento de si? Na maioria das vezes, o autoconhecimento
se torna uma meta em si mesma. O homem quer conhecer-se, quer dominar-se a si
mesmo, busca uma harmonia interior. Mas, e nós cristãos? Devemos, podemos nos
preocupar com essa questão? E, em uma resposta afirmativa, qual o objetivo de
tal atitude?
“A causa de grandes males é o fato de não nos conhecermos
devidamente, é distorcermos o conhecimento próprio” (1). Quem nos fala isso é
Santa Teresa de Jesus, uma das maiores místicas da Igreja, doutora e mestra na
vida de oração, já no século XVI. E podemos descobrir, pasmados, que Evágrio
Pôntico, famoso monge do século IV, já dizia: “Se quiseres conhecer a Deus,
procura antes conhecer-te a ti mesmo”. Isso revela que o autoconhecimento se
iniciou com os monges e foi vivido pelos santos, chegando até nós hoje como uma
riqueza no seio da Igreja. Mas, como e para que esses homens e mulheres de Deus
tomaram essa trilha? Eles buscavam, essencialmente, a Deus. Deus era sua meta.
Contudo, no caminho para Deus depararam-se consigo mesmos. Perceberam que para
se chegar verdadeiramente até Deus era preciso percorrer um caminho que passava
pelas próprias feridas e misérias e pela maravilha de se descobrirem como
filhos de Deus. Portanto, para nós, cristãos, o autoconhecimento é
importantíssimo e deve ser vivido como um instrumento para se tocar a Deus.
“Parece, pois, que o mais importante de todos os conhecimentos é o conhecimento
de si próprio, pois quando alguém conhece a si próprio, ele há de chegar ao
conhecimento de Deus” (2). E por que essa ligação tão íntima entre o conhecimento
de si e o conhecimento de Deus? Ora, o homem foi criado para Deus, somos imagem
e semelhança de Deus, nossa origem está incrustada em Deus (quem poderá
esquecer as lindas palavras do Salmo “Que é o homem, Senhor, para cuidardes
dele, que é o filho do homem para que vos ocupeis dele? (3) e, portanto, “o
homem só está em ordem quando ele se abre para Deus, quando Deus é o verdadeiro
objetivo de sua vida. Só em Deus é que o homem encontra caminho pra si
próprio.” (4)
Quer fazer um teste sobre o seu autoconhecimento? Pense
nisso: “Ora bem, como é que eu sou? Geralmente fugimos a essa pergunta, mas, se
tivéssemos que responder a ela, provavelmente não seríamos capazes de dar uma
resposta satisfatória. Diríamos talvez meia dúzia de coisas vagas, misturando
auto-elogios disfarçados com o reconhecimento de algum defeito inofensivo. Nada
de sólido e realmente veraz. Porque a verdade é que nos desconhecemos. Tanto é
assim que, diante de algo objetivo, como por exemplo a gravação de nossa voz,
uma caricatura que nos fazem e até uma fotografia que nos apanhou
desprevenidos, surpreendemo-nos. Esse sou eu?” (5)
Como conhecer-se, então? Não são necessários conhecimentos
organizados, mas o olhar simples do homem consciente. É uma integração da
própria vida, dos pontos positivos e negativos, sabendo-se apreciar os
primeiros e tocar o sentido dos segundos. Não é simplesmente saber quem e como
somos, mas aceitar o que somos. Pois só pela aceitação da nossa própria
realidade é que poderemos trabalhar as nossas fraquezas, pecados e misérias
para nos tornarmos aquilo que devemos ser. Ele nos ajuda a entender o porquê de
muitas coisas que acontecem em nosso interior, de termos certos sentimentos, de
agirmos de determinadas maneiras em determinadas situações. E de modo muito
especial, conhecer-se não é apenas nos ver assim como os outros nos vêem,
aceitando os defeitos e as qualidades que os outros apontam, mas nos ver assim
como Deus nos vê, pois só Ele nos conhece verdadeiramente e sabe o que existe
em nosso coração.
“Eu sou o que Deus pensa de mim” (6). Essa frase belíssima e
profunda de Santa Teresinha traz à tona toda a graça que é ser pessoa humana,
que é possuir o dom da vida e também toda a esperança de que nossa vida não é
determinada por aquilo que já vivemos, especialmente os aspectos negativos, mas
ela é determinada pelo olhar de Deus, pelo sonho de Deus, que Ele contempla
constantemente a cada vez que nos olha. Só Deus nos conhece plenamente, só Ele
sabe das nossas motivações mais profundas, dos nossos sentimentos mais verdadeiros,
das nossas intenções mais puras e por isso mesmo Ele aposta em nossa
transformação. Deus nos ama como somos, mas não nos deixa como estamos, Ele nos
convida à conversão e por isso o processo de autoconhecimento é de imensa
riqueza para nossas vidas, pois exige especialmente que nos comparemos com o
que Deus quer e espera de nós e aquilo que Deus quer e espera de nós é sempre o
melhor.
A partir dessa verdade, descobrimos, então, que a via para o
autoconhecimento é a oração. Vamos nos conhecer à medida que nos colocarmos na
presença de Deus e conseguirmos olhar nos Seus olhos, para ali ver refletida a
nossa imagem. É olhando nos olhos de Deus que nos veremos assim como Ele nos
vê. “A capacidade que a oração possui para nos levar ao autoconhecimento mais
profundo, fundamenta-se no fato de ela confrontar-nos com Deus. No momento em
que me confronto com Deus, me torno consciente do que em mim está errado. A
oração manifesta o que a mera observação jamais haveria de perceber.” (7) O
encontro com Deus na oração deve nos levar a mergulhar no nosso interior, de
modo a que entremos em contato com as nossas realidades mais íntimas como
pensamentos, sentimentos, angústias, paixões etc… Assim a oração se torna
autoconhecimento e ao mesmo tempo possibilidade de conhecer verdadeiramente a
Deus. Pois à medida que a pessoa encontra a si mesma ao ver desvelada sua
própria natureza diante de Deus, também pode repentinamente ver desvelar-se a
natureza de Deus como aquele que a ama e sustenta. Assim, também conhecemos o Amor
de Deus e podemos nos apaixonar cada vez mais por Ele, percebemos o quanto nós
somos amados e o quanto não merecemos esse amor. Fazemos a experiência do amor
gratuito de Deus por nós e compreendemos que recebemos muito mais do que
merecemos e passamos a ter um profundo sentimento de gratidão por todo amor
recebido. Isso nos encoraja a enfrentarmos a vida com mais coragem, com
fortaleza e vivacidade. Assim se realiza a promessa de Deus: “Se alguém está em
Cristo é uma nova criatura” (8): viver a liberdade do próprio ser em Cristo,
não estando mais condicionado às circunstâncias, ao passado, a impulsos
incontroláveis…
“O homem novo, do qual fala São Paulo, está totalmente
iluminado pela sabedoria do Espírito. Mas a luz é refletida e resplandece em
sua humanidade” (9). Assumir a sua humanidade é essencial para a maturidade
espiritual do homem e o autoconhecimento é peça essencial para que isso seja
possível. Vivendo nessa busca contínua, nós podemos encontrar a cada dia a
alegria e o contentamento de viver, podemos tocar a preciosidade das nossas
vidas aos olhos de Deus, conhecer o céu que somos chamados e encontrar dentro
de nós mesmos. Esse processo de autoconhecimento, quando bem vivido, nos leva a
descobrir o profundo júbilo do salmista, ao cantar: “Fostes vós que plasmastes
as entranhas de meu corpo, vós me tecestes no seio de minha mãe. Sede bendito
por me haverdes feito de modo tão maravilhoso. Pelas vossas obras tão
extraordinárias, conheceis até o fundo a minha alma” (10).
(1) Santa Tereza de Jesus, “Castelo Interior”.
(2) São Clemente de Alexandria.
(3) Sl 143, 3.
(4) Anselm Grün, “A oração como encontro”.
(5) J. Malvar Fonseca, “Conhecer-se”.
(6) Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face.
(7) Anselm Grün, “Oração e autoconhecimento”.
(8) 2 Cor 5, 17.
(9) Amedeo Cencini, “Os sentimentos do filho”.
(10) Sl 138, 13.
Cristina Tatiana S. C. Oliveira
Consagrada da Comunidade Católica Pantokrator
Revista “O Pão da Vida”, setembro de 2008
Comunidade Católica Pantokrator
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