Por Dom Henrique Soares da Costa
Sobre
a Liturgia: insistentes ponderações
A liturgia é para nosso alimento, alento e transformação espiritual: ela nos
cristifica, isto é, é obra do próprio Cristo que, na potência do Espírito, nos
dá sua própria vida, aquela que ele possui em plenitude na sua humanidade
glorificada no céu. Participar da liturgia é participar das coisas do céu, é
entrar em comunhão com a própria vida plena e glorificada do Cristo nosso
Senhor.
A liturgia não é feita produzida por nós, não é obra nossa! Ela é instituição
do próprio Senhor. Para se ter uma ideia, basta pensar em Moisés, que vai ao
faraó e lhe diz: “Assim fala o Senhor: deixa o meu povo partir para fazer-me
uma liturgia no deserto”. E, mais adiante, explica ao faraó que somente lá, no
deserto, o Senhor dirá precisamente que tipo de culto e que coisas o povo lhe
oferte.
Isto tem a ação litúrgica de específico e encantador: não entramos nela para
fazer do nosso modo, mas do modo de Deus; não entramos nela para nos
satisfazer, mas para satisfazer a vontade de Deus. Por isso digo tantas vezes
que o espaço litúrgico não é primeiramente antropológico, mas teológico: a
liturgia é espaço privilegiado para a manifestação e atuação salvífica de Deus
em Cristo Jesus nosso Senhor. Nela, a obra salvífica de Cristo é perenemente
continuada na Igreja.
O problema é que entrou em certos ambientes da Igreja uma concepção errada de
liturgia, totalmente alheia ao sentido da genuína tradição cristã: a liturgia
como algo que nós fazemos, do nosso modo, a nosso gosto, para exprimir nossos
próprios sentimentos. Numa concepção dessas, o homem, com seus sentimentos,
gostos e iniciativas, é o centro e Deus fica de lado! Trata-se, então, de uma
simples busca de nós mesmos, produzida por nós mesmos; uma ilusão, pois aí só nos
encontramos e os sentimentos que provocamos. É o triste curto-circuito: faz-se
tudo aquilo (coreografias, palmas, trejeitos, barulho, baterias infernais,
sorrisinhos do celebrante, comentários e cânticos intimistas, invenções impertinentes
e despropositadas...) para que as pessoas sintam, liguem-se, “participem”...
Mas, tudo isto somente liga a assembleia a si mesma. Não passa de uma exaltação
subjetiva e sentimental! Aí não se abre de fato para o Silêncio de Deus, para
Aquele que vem nos surpreender com sua glória e sua ação silenciosa, profunda,
consistente e transformadora. A assembleia já não celebra com a Igreja de todos
os tempos e de todos os lugares; muito menos com a Igreja celeste!
O sentido da liturgia é outro: é um culto prestado a Deus porque ele é Deus!
O interesse é Deus! A liturgia é algo devido a Deus e instituído pelo próprio
Deus. Quando alguém participa de uma liturgia celebrada como a Igreja determina
e sempre celebrou, se reorienta, se reencontra, toma consciência de sua própria
verdade: sou pequeno, dependente de Deus e profundamente amado por ele: nele
está minha vida, meu destino, minha verdade, minha paz. Nada é mais libertador
que isso.
Vê-se a diferença entre essas duas atitudes ante a realidade litúrgica: na
visão que se está difundindo, criamos uma sensação, uma ilusão. É algo parecido
com a sensação de bem-estar que se pode sentir diante de uma paisagem bonita,
num bloco de carnaval, num show, num momento sublime, numa noite com a pessoa
amada... Na perspectiva que a Igreja sempre teve e ensinou, não! Estamos diante
da Verdade que é Deus; verdade que não produzimos nem inventamos, mas vem a nós
e enche o nosso coração! Devemos procurá-la? Certamente sim: "Fizeste-nos
para ti, Senhor, e nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em
ti!" Mas para isto é indispensável a capacidade de silêncio, de escuta, de
abrir os olhos do coração para a beleza de Deus. A liturgia nos dá isto!
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