Quem conhece um mínimo de História, sabe que, durante
milênios, tanto os mais elevados espíritos pagãos como os cristãos – no
Ocidente e no Oriente – chegaram à certeza de que a autêntica felicidade só
podia encontrar-se na virtude, no bem, na realização do ideal divino sobre o
homem. Os homens e as mulheres falhavam, pecavam, cometiam crimes, eram muitas
vezes mesquinhos; mas em nenhum momento se apregoou ou se pensou que o mal
residisse no sofrimento ou no sacrifício; o mal estava, sim, na falta de
virtude, na falta de valores, na mentira, no desregramento, na escravidão da
alma às paixões baixas, em suma, no mal moral, no pecado.
Todos os heróis admirados e propostos como modelo à
juventude eram homens e mulheres capazes de grandes sacrifícios, de generosas
renúncias, de heróicos sofrimentos por uma causa, por um ideal que se
identificava sempre com a verdade e o bem, e nunca com a auto-satisfação
hedonista ou o interesse egoísta. Este era o comum denominador dos grandes
personagens bíblicos – Moisés, Davi, Judite, Ester... –, dos heróis pagãos –
Aquiles, Penélope, Enéias, Dido... – e dos heróis cristãos, quer se tratasse de
mártires, de virgens enamoradas de Deus, de grandes servidores dos pobres; quer
de modelos de cavaleiro cristão, como o rei São Luís da França ou El-Rei Dom
Sebastião; ou os heróis lendários como Sir Lancelot, Tirant lo Blanc e o louco
e genial Dom Quixote de la Mancha. O espelho da grandeza era a virtude. E a
virtude não só tolerava, mas exigia o sofrimento heróico, paciente, e o
sacrifício desinteressado, até chegar à entrega – sem um arrepio – da própria
vida. Agora, essa página de milênios parece estar sendo rasgada em muitos
ambientes, para grande satisfação de Satanás. Na chamada modernidade, o pai da
mentira – pelos seus mil porta-vozes – pontifica na mídia, na televisão, na
Internet, no cinema, nas revistas, nas letras das canções, nas aulas dos
colégios, cursinhos e faculdades, nos consultórios psicológicos, psiquiátricos
ou astrológicos, e a toda a hora diz, proclama, prega, como quem define um
dogma de fé incontrovertível: “Abaixo a cruz, apaguemos a cruz, deletemos o sofrimento,
o sacrifício sem gosto, desprezemos o sacrifício sem o prazer da ambição, do poder,
da posse, da vaidade corporal, da vaidade profissional, da vaidade esportiva.
Sejamos felizes, meus senhores, e convençamo-nos de que a felicidade não está
nas balelas do bem nem da virtude – isso já era! –, mas no Prazer, que é o
nosso único e verdadeiro bem, o nosso único e verdadeiro deus”. Com estes
parâmetros começa infelizmente muitas vezes a formação de muitas crianças, que
os pais não se atrevem a contrariar (comem o que querem, assistem aos programas
de tv que querem, navegam na Internet como querem, falam grosso a quem querem,
vestem como querem, sujam o que querem...); que pais e professores não ousam limitar,
disciplinar, por medo de que sofram e fiquem com raiva ou traumatizadas.
Assim crescem muitos adolescentes, sem um mínimo de ordem,
de autodomínio, de capacidade de sacrifício e de renúncia, sem condições de
fazer algo de que não gostem ou que não sintam, pois, como todos dizem, isso
não seria autêntico. Assim se abalançam a um sexo sem amor nem finalidade,
desumanizado e bestial, em que o prazer é a única regra, e já não há respeito,
nem ideal, nem amor, nem limites para as mais aberrantes e degradantes experiências.
E como a experiência do prazer é ávida e insaciável, nunca
se chega ao limite. É preciso tentar também as drogas, mergulhar no álcool,
sentir a embriaguez de jogos suicidas: racha, roleta-russa, etc. A vida
egoísta, sem a finalidade de um bem, acaba devorando-se a si mesma.
Chega depois a idade adulta, e se manifestam então um homem
ou uma mulher que, mesmo quando estão profissionalmente preparados, se revelam
incapazes de assumir o sacrifício e de enfrentar a cruz que é necessária para
edificar uma família, para ter e educar filhos, para ser fiéis, para ser
honestos no trabalho, para compreender e suportar com paciência os defeitos dos
colegas... Chegou a idade adulta e, como no conto de fadas, um dedo de criança
invisível aponta para eles e diz: O rei está nu! Está nu, está despreparado,
carente de virtudes, de amor à verdade e ao bem, de algo que não seja o prazer
e a satisfação autista do seu eu.Mas é justamente nesta cultura sem Cruz que se
dá, em proporções nunca vistas na História, o máximo índice per capita de
tristeza, de solidão, de tédio, de mau humor, de necessidade de fuga, de
escravidão aos vícios e paixões, de violência, de desrespeito ao próximo, de
vazio.“A gente – diagnosticava mons. Escrivá em São Paulo, em 1974 – está
triste. Fazem muito barulho, cantam, dançam, gritam – mas soluçam. No fundo do
coração, só têm lágrimas: não são felizes, são desgraçados”
.
No mesmo sentido, o Papa João Paulo II referia-se
incisivamente a essa situação numa alocução de 18 de junho de 1991: “Não é difícil,
mesmo para um observador que fique apenas no nível da psicologia e da
experiência, descobrir que a degradação no campo do prazer e do amor é
proporcional ao vazio que deixam no homem as alegrias que enganam e defraudam,
procuradas naquilo que São Paulo chamava as «obras da carne»: Fornicação, impureza,
libertinagem [...], bebedeiras, orgias e coisas semelhantes (Gál 5, 19.21). A estas
alegrias falsas podem acrescentar-se, e às vezes vão juntas, as que se procuram
na posse e no uso desenfreado da riqueza, no exibicionismo do luxo e na ambição
de poder”.
Trecho do livro: A Sabedoria da cruz , Francisco Faus
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