Um trabalho cansativo e inútil
Há uma cena encantadora, no final
do Evangelho de São João (Jo 21,1 ss.), que hoje nos vai ajudar a meditar sobre
a nossa vida, a pensar diante de Deus, concretamente, no sentido do nosso
dia-a-dia, que tantas vezes nos parece monótono e cinzento.
Trata-se de uma cena de pesca, de
um fato que aconteceu depois da ressurreição de Cristo, quando os Apóstolos, a
pedido de nosso Senhor, já tinham subido de Jerusalém para a Galiléia. Lá,
certo dia, se encontravam juntos cinco deles (Pedro, Tomé, Bartolomeu ou Natanael,
Tiago e João e outros dois cujo nome não se menciona). Estavam novamente à
beira do lago de Genesaré, palco que fora do seu trabalho profissional e também
lugar de encontros inesquecíveis com Jesus.
Estava caindo a tarde. Pedro,
então, disse aos outros: Vou pescar, e assim o fizeram: Partiram e entraram na
barca. Naquela noite, porém, não pescaram nada.
Após uma noite de esforços
inúteis – lançar a rede, recolhê-la vazia! -, estavam voltando para a praia em
silêncio, como antigamente já lhes acontecera (cf. Lc 5, 5), e seus corações
estavam tão cinzentos como a cor das nuvens do ante-amanhecer.
O coração inundado pela neblina
cinza e triste de um trabalho inútil! Essa é a cor de muitos corações, quando
sentem o peso da rotina dos dias: sempre o mesmo trabalho, sempre os mesmos
lugares, sempre as mesmas caras, sempre o mesmo trânsito, sempre as mesmas
reclamações da mulher, sempre os mesmos mutismos e alheamentos do marido, e os
mesmos problemas dos filhos, e a mesma dor de coluna, e a mesma falta de dinheiro…
E isso, um dia e outro dia, e um mês e outro mês, e um ano e outro ano… As
pessoas sentem-se envolvidas por essa rotina como por um gás asfixiante, e pode
chegar um momento muito perigoso, que é quando pensam: “Não agüento mais, isto
não é vida”.
A solução será “mudar”?
Muitos acham, então, que a
solução consiste em “mudar” (mudar de cidade, mudar de mulher ou de marido,
mudar de trabalho, mudar de religião, mudar os hábitos certos e passar a ter
vida desregrada). Ou então “desligam” de tudo e de todos, e passam a viver num
mundo de sonhos, de fantasias (divagações de Internet e tv), de saudades…, que,
por serem evasões, facilmente desembocam na pior fuga, na alienação completa do
álcool e das drogas.
Santo Agostinho, o coração
inquieto que não se conformava com as coisas confusas e medíocres, dizia: “Eu
temia tanto como à morte ficar preso pelo hábito rotineiro” (Et tamquam mortem
reformidabam restringi a fluxu consuetudinis). Mas não resolveu o problema
fugindo, e sim arrependendo-se dos seus pecados e procurando Deus com toda a
sua alma.
Todos deveríamos ter pavor tanto
da rotina asfixiante como da falsa solução da fuga… Porque o problema da rotina
–contrariamente ao que a maioria pensa – não está na repetição monótona das
ações e das circunstâncias externas, mas na falta de renovação do nosso
coração, do nosso modo de ver e amar as coisas e as pessoas. O mal está
exclusivamente dentro de nós, gostemos ou não de reconhecer isso.
É muito sugestiva, a respeito
disso, aquela história que conta Chesterton sobre o inglês que se sentia
entediado de morar sempre na mesma ilha, e por isso foi à procura de outra
terra, a terra dos seus sonhos. Viajou muito. Todos os países aonde aportava
não o satisfaziam. Já se estava cansando de tanto viajar, quando avistou uma
terra que o atraiu extraordinariamente. Aproximou-se dela, desembarcou, começou
a internar-se no território e logo chegou, cheio de entusiasmo, à conclusão:
“Esta é a terra dos meus sonhos, a que sempre andei procurando!” Ao perguntar a
um dos habitantes onde estava, este respondeu-lhe: “Na Inglaterra”.
Algo de parecido acontece
conosco. Não precisamos ir atrás de outras “ilhas”. Basta ficarmos na nossa –
na nossa vida real – , mas vendo-a e vivendo-a com frescor de novidade. Isto é
o que Jesus nos ensina.
Voltemos, então, à nossa cena de pesca.
Jesus na luz do amanhecer
O Evangelho, após falar da pesca
falha, continua a contar: Ao romper o dia, Jesus apresentou-se na margem, mas
os discípulos não o reconheceram. Jesus disse-lhes então: “Rapazes, tendes alguma
coisa que comer”. É tocante verificar que Jesus ressuscitado apresenta-se aos
Apóstolos humano, afetuoso, familiar, não com uma majestade gloriosa e
distante. Fala familiarmente: Rapazes! Pergunta se têm algo que se possa comer.
Ele quer mostrar-nos que, depois da ressurreição (agora, portanto!), deseja
viver junto de nós como um amigo muito próximo, compreensivo, humano,
inseparável…
Mas, como acontece conosco,
sucedeu que os discípulos, com uma grande miopia espiritual, não perceberam que
Jesus estava lá, sempre junto deles, e continuaram soturnos e tristonhos. Dá
para imaginar o tom de aborrecimento com que devem ter respondido, incomodados,
a Jesus: -”Não! Não temos nada para comer”. E acho que nosso Senhor – rei e
senhor de toda a alegria – divertiu-se, humana e “divinamente”, quando lhes
disse: Lançai a rede ao lado direito da barca e encontrareis. Aconteceu o que
já dá para imaginar: uma pesca milagrosa, abundantíssima. Lançaram a rede e,
devido à grande quantidade de peixes, já não tinham forças para a arrastar.
Jesus não faz as coisas pela metade…
Ao ver aquele milagre, João disse
a Pedro: “É o Senhor!” João, o discípulo amado, foi o primeiro a ter
sensibilidade para perceber que aquele desconhecido era Jesus, e avisou o
“patrão” da barca, Pedro. E o bom Pedro, o Pedro emotivo e impulsivo que todos
conhecemos, “deu uma de Pedro”: Simão Pedro, ao ouvir que era o Senhor, apertou
o cinto da túnica, porque estava sem mais roupa, e lançou-se à água. Não pôde
esperar que a barca chegasse à terra. Lançou-se de cabeça à água, ansioso por
chegar a Jesus quanto antes! Pouco depois chegaram os outros na barca,
arrastando a rede cheia.
E o que encontraram? Vamos
prestar bem atenção. Vocês acham que encontraram um Jesus hierático, sentado
numa cátedra de marfim, dizendo-lhes: “Vamos deixar-nos de coisas banais,
materiais, agora que me reconheceram, e vamos falar do que importa: de coisas
celestiais, de coisas elevadas, só das coisas espirituais, as únicas que
contam”? Vocês acham que foi assim? É claro que não! Todos sabemos que foi bem
diferente. Vejamos o que diz o Evangelho.
Ao saltarem em terra, viram umas
brasas preparadas e um peixe em cima delas, e pão. Disse-lhes Jesus: “Trazei
aqui alguns dos peixes que agora apanhastes… E depois : Vinde comer. E pronto!
Lá ficaram sentados em roda, à volta da fogueirinha que o próprio Jesus
acendera, sentindo o cheiro delicioso de peixe fresco assado – que Jesus já
tinha começado a preparar, muito diligentemente, com as suas próprias mãos – ,
e repartindo pedaços de pão e comendo como uma alegre turma de amigos em
piquenique de “feriadão”…
Jesus ama o “trivial cotidiano”
Jesus fez questão de valorizar,
de mostrar como é importante o “trivial cotidiano”. Eu tenho um conhecido que
até chorava de emoção ao pensar nesta cena: “Você – dizia – não percebeu como é
maravilhoso? Cristo farofeiro! O Filho de Deus, farofeiro!”
Esse meu amigo se alegrava
justamente ao perceber o carinho com que Cristo vê e valoriza a nossa vida
diária, as pequenas coisas da vida, que às vezes nos parecem tão longe dos
grandes ideais, e concretamente tão longe do ideal cristão de Amor e de
santidade…E esquecemos que Jesus passou trinta anos vivendo com amor a “rotina
dos dias”, no lar de Maria e José, tendo uma vida normal, discreta e simples,
de família, de trabalho…, sendo, como se lê no Evangelho, o carpinteiro, o
filho do carpinteiro… E aquilo era a “vida do Deus feito homem”, cheia,
portanto, de grandeza divina, de santidade. Com ela estava nos redimindo,
estava nos salvando.
Se refletirmos um pouco,
perceberemos que esta cena de Cristo que pesca juntamente com os discípulos, e
prepara o almoço, e toma a refeição com os amigos, e conversa com eles à beira
do lago é um símbolo do que deveria ser cada um dos nossos dias. Também nós
podemos acordar cada manhã (pensemos na manhã da segunda-feira mais cinzenta de
todas), e – se nos tivermos lembrado de rezar e oferecer o nosso dia a Deus – ,
poderemos ver, com a luz da fé, que Jesus está junto de nós e nos diz: “Vamos
começar o dia juntos, vamos trabalhar juntos, vamos tratar bem os outros, vamos
fazer do “trivial cotidiano” uma aventura de Amor…”.
Seria tão bom que conseguíssemos
ser cristãos que rezam, que se lembram com fé de Deus durante o dia inteiro!
Bastaria, para isso, às vezes, trazer um crucifixo no bolso, ou um terço, e
rezar as orações que amamos, também pela rua; e dizer muitas breves
jaculatórias – do tipo “Jesus, eu te amo! Jesus, dá-me um coração como o teu!”
– no trânsito, e ao iniciar uma tarefa, e ao morder os lábios para não xingar
ou resmungar ou falar mal dos outros…. Se conseguíssemos conversar com Cristo
até dos detalhes mais triviais, com certeza se acenderia uma luz nova no nosso
coração e, com essa luz, veríamos de uma maneira “nova” todas as coisas que,
com Ele, nunca ficam gastas, puídas, aborrecidas e rotineiras. Entenderíamos
então por que Jesus nos diz: Eis que eu faço novas todas as coisas (Ap 21,5).
O “santo do cotidiano”
Há uma doutrina cristã
maravilhosa, que São Josemaría Escrivá, como instrumento de Deus, proclamou com
uma clareza e uma força tão grandes, que acendeu chamas de alegria e de amor em
milhares de pessoas comuns – cristãos “vulgares” – em todo o mundo. A missão
que Deus lhe confiou consistia em contribuir para que os cristãos comuns, que
vivem no meio do mundo, compreendessem “que a sua vida, tal como é, pode vir a
ser ocasião de encontro com Cristo: quer dizer, que é um caminho de santidade e
de apostolado. Cristo está presente em qualquer tarefa humana honesta: a vida
de um simples cristão – que talvez a alguns pareça vulgar e acanhada – pode e
deve ser uma vida santa e santificante”.
E como conseguir viver esse
ideal? São Josemaría mostrava o caminho: “Fazei tudo por amor –dizia -. Assim
não há coisas pequenas: tudo é grande. – A perseverança nas pequenas coisas,
por Amor, é heroísmo”. E aplicava esta doutrina – que é inspirada no Evangelho
e em São Paulo (se não tiver amor, nada me aproveita…: 1 Cor,13,3) – a todas as
coisas cotidianas boas e normais: podemos sorrir, por amor, quando não temos
vontade mas os outros precisam de “caras sorridentes”; podemos acabar, por
amor, um trabalho que gostaríamos de interromper por cansaço; podemos colocar a
roupa no seu lugar, oferecendo esse sacrifício a Deus, em vez de jogá-la em
cima da cama ou no chão; podemos rezar as orações que nos propusemos, ainda que
nos custe concentrar-nos, porque não queremos furtar a Deus, com desculpas de
cansaço (que não teríamos para um jogo de futebol ou para assistir à
telenovela) esses momentos que são para Ele…
São Josemaria Escrivá, quando
estava nesta terra, ajudava as pessoas – e também agora continua a ajudá-las lá
do Céu– a converter, com a graça de Deus, todos os momentos e circunstâncias da
vida em ocasião de amar e de servir, com alegria e com simplicidade, e iluminar
assim os caminhos da terra com o resplendor da fé e do amor. Para os que se
propõem seriamente viver assim, a rotina é impossível. O amor e o desejo de
servir fazem ver tudo como uma oportunidade única, inédita, de dar (amar é dar)
algo a Deus e aos nossos irmãos. Feito com carinho, tudo se faz “novo”…
Lembro-me agora de um episódio de
faz muitos anos. Fui certa vez comprar figuras de presépio a um artesão – um
artista de verdade –, e lhe pedi uma figura igual a outra que ele tinha lá numa
prateleira do ateliê. Disse-me rotundamente que não. Perguntei: “Mas não
conserva o molde?” Ao ouvir essas palavras, levantou-se indignado, como se eu o
houvesse ofendido, e gritou: “Molde! …Molde!.. Eu não tenho molde. Cada figura
é única e irrepetível”… Se cada dia nosso fosse assim, sem “molde” rotineiro,
sem ser uma “peça em série” , que maravilha…!
Neste sentido é que Mons. Escrivá
dizia: -“Não esqueçam nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas
situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir… Deus
espera-nos cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no
quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do
lar e em todo o imenso panorama do trabalho”. “A vocação cristã consiste em
transformar em poesia heróica a prosa de cada dia”.
E, ao falar disso, insistia com
especial ênfase na santificação do trabalho. Incutia nas almas o ideal de
realizar o trabalho por amor a Deus e com o empenho de servir ao próximo:
trabalho bem feito, acabado, caprichado nos detalhes, digno de ser colocado no
altar do coração e oferecido juntamente com Jesus-Hóstia na Santa Missa. Toda a
vida do cristão se converteria assim numa Missa. É a isso que todos nós
deveríamos aspirar.
Já imaginou como tudo mudaria se,
ao terminar cada um dos nossos dias e fazer a nossa oração da noite, pudéssemos
dizer: – «Amanhã vou começar um outro dia, uma nova etapa da minha “vida
diária”. Mas agora já não vou encará-lo aborrecido, suspirando e dizendo: “mais
um”. Não! Ajudado por Deus, vou entrar nele com a luz que Jesus acendeu no meu
coração, e direi, com alegria: “Hoje começa mais um dia, novinho em folha, por
estrear. Hoje se me apresenta mais uma ocasião de amar e de servir. Vou me
esforçar – rezando, mantendo o mais possível a presença de Deus – por conseguir
que o meu amor introduza belas novidades, atitudes renovadoras, na minha rotina
de todos os dias”.
(Adaptação de um capítulo do
livro de F. Faus: Cristo, minha esperança)
Fonte: http://www.padrefaus.org
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